O cenário é de Copa
do Mundo, a partida é de semifinal de Copa do
Brasil, mas em campo o Flamengo terá um representante genuíno do que há
de mais
informal e divertido no futebol: as peladas. O barro que levantava
poeira a cada
arrancada na Ribeira, na Cidade Baixa, em Salvador, deu lugar ao gramado
padrão
Fifa do Maracanã. Para Gabriel, porém, a sensação de ter a bola nos pés é
a mesma. Ao menos, não há mais o risco de voltar para casa sem um
tampão do
dedão. Realidade que acompanhava até pouco mais de cinco anos atrás um
jovem
que só queria brincar seu "baba" - como é chamado o futebol de rua na
Bahia - e deu início, já aos 19, a uma trajetória que terá um dos
capítulos
mais importantes nesta quarta, contra o Atlético-MG.
Não faz muito tempo, e Gabriel sequer sonhava em ser profissional. Estudante, aproveitava as brechas nos livros para ganhar uns trocados em campinhos de várzea pela Bahia. O agrado, no entanto, não era uma exigência. Como não foi quando os amigos Léo e Desenho o perturbaram para disputar um torneio em um clube de Salvador. Depois de furar no primeiro convite, foi carregado na porta de casa no seguinte e mudou de vida. Encantado, o então presidente do Bahia, Marcelo Guimarães Filho, o levou para base do clube, em 2009. Era o começo improvável de uma carreira consolidada em 2014 e que terá um dos "babas" mais importantes diante do Galo, no Maracanã.
Vice-artilheiro do
Flamengo na temporada, com nove gols, Gabriel é, de
longe, o destaque absoluto do outubro rubro-negro. Autor dos gols nas
duas
vitórias sobre o América-RN, que colocaram o time na semi, parece ter
deixado para trás uma inconstância que o acompanhava desde a chegada
à Gávea para se tornar figura importante para Vanderlei Luxemburgo. O
treinador, inclusive, não tem medido elogios ao camisa 17, mas sempre
com a
ressalva de que é necessário paciência com quem ainda carrega consigo
traços de
peladeiro. Origem que o jovem baiano não abre mão e tratou de recordar
em
visita ao Aterro do Flamengo, reduto dos "babas" no Rio de Janeiro.
Gabriel e seu reencontro passageiro com a vida de paladeiro (Foto: André Durão)
- O baba é minha formação no futebol, é minha base, onde aprendi tudo
que sei. Claro que falta muito, por não ter feito a base em um clube, mas tenho
tentado desempenhar meu futebol com o que vivi na várzea. Jogava em qualquer
canto, varanda, rua, em campos também. Bastava ter a bola, em qualquer canto
rolava. Tinha aquela rivalidade de amigos, que a gente não quer perder muito,
mas também jogava campeonato. Aí, era mais pegado.
Os seis campos de grama artificial do Aterro apresentam condições bem
mais próximas das que Gabriel encontra atualmente do que as de onde se moldou
em Salvador. O piso, entretanto, nunca foi problema para o jogador. Fominha, se
jogava onde quer que fosse, mesmo que fosse necessário sacrificar os próprios
pés.
- Esse aqui não é meu piso, não. Meu piso é o barro. Lá era só o barro,
o asfalto... Era muita cabeça de dedo indo embora, pisava em prego, mas o mais
importante era jogar bola. Essa era a minha felicidade desde moleque. Quando
tinha campo de grama sintética, era uma felicidade.
O "baba" que mudou sua vida era
daqueles para valer. Tinha uniforme, regra e até juiz. Famoso na Cidade Baixa
pela velocidade nas tabelas e arrancadas em direção ao gol, Gabriel
virou reforço no campeonato da Asbac (Associação dos Servidores do Banco
Central). Magrelo e de pernas finas, infernizou os adversários. Quem viu não
acreditaria que, anos antes, tinha sido dispensado logo no segundo dia de
peneira no modesto Fluminense de Feira de Santana. Marcelo Guimarães Filho nem
sabia disso, mas pagou para ver aquele talento do "baba" na base do
Bahia.
- Com 19 anos era
quase impossível, né? Os moleques estão subindo
para o profissional com 17. Alguém com 19 sem nunca ter jogado em time
nenhum é
complicado, mas foi coisa de Deus. Dois amigos que
jogavam no time do presidente do Bahia me chamaram. Na primeira
semana, inventei uma desculpa, disse que era aniversário do meu pai, e
não fui. Na segunda, não teve jeito. Foram na
porta de casa e me levaram. O jogo foi 3 a 1, fiz os três, mesmo sendo
magrinho
e em um torneio pegado. Acho que isso impressionou. Aí, cheguei devagar.
Queria mesmo era poder dizer para meus amigos que já tinha
jogado no Bahia - recorda o camisa 17 do Fla.
Quilos a mais e dicas de Luxa alavancam sucesso
Gabriel nem precisou perder tempo contando para os amigos. No juniores, repetia aquilo tudo que impressionou o presidente no
"baba". Com menos de um ano, já tinha marcado gol no título estadual
de 2010 e sido convocado para os profissionais. Franzino, sofreu com as chegadas
mais duras e o ritmo acelerado, mas a transferência para o Flamengo, com apenas
dois anos no time de cima, deixa claro que adaptação não foi problema. Já o aprendizado, é constante.
Desde que chegou ao Flamengo, o meia-atacante ganhou mais de 10kg, e
convive com conselhos diários da dupla Luxa e Deivid. De ouvidos atentos,
Gabriel mantém consigo o espírito da rua, mas sabe que precisa agregar cada vez
mais conceitos básicos que não fizeram parte de sua formação.
- Quando cheguei ao
profissional, foi tudo diferente. Achava que os caras eram Super-Homens.
Só de tocar na bola eu ficava feliz. Foram
pacientes comigo, diziam que eu estava um passo atrás e ia ter que
correr atrás
do prejuízo. É normal você entender o jogo
diferente. Vim da pelada e via muito individualmente. Hoje, vejo que não
é assim. Temos que fazer o melhor em prol da equipe, fazer o papel
tático. O
melhor para o time, não para você. Com o tempo, estou aprendendo cada
vez mais.
Vanderlei tem me dado oportunidade, me mostra o caminho, e posso ir
longe se
escutar as ideias dele.
O campo do Aterro do Flamengo contou com a presença ilustre do camisa 17 rubro-negro (Foto: André Durão)
A rigidez do futebol tático, por sua vez, tem um limite. E o que foi imposto por Gabriel termina na intermediária ofensiva. Obediente em suas obrigações, principalmente defensivas, ele volta a ser o menino dos campos de barro da Ribeira a medida em que se aproxima do gol adversário.
- O futebol vai muito do improviso também. Chega de uma linha para
frente que não dá para ser robô. Da intermediária para frente, é preciso uma
tabela, um drible, e quem não teve base, mas jogou na várzea o tempo inteiro,
tem uma certa vantagem. Os moleques da base são muito indicados para
fazer a parte tática e esquecem das jogadas que decidem os jogos, o diferente.
No futebol, temos que ser alegres sempre. Com responsabilidade, mas pensando no
prazer de jogar bola, em se divertir.
O profissionalismo do futebol atual tornou raro casos de sucesso como o
do rubro-negro. Cada vez mais cedo, jovens promessas são submetidos a decisões
definitivas e cobranças precoces por resultados. As oportunidades
diminuem, e muito, a medida que a idade aumenta. Tentar a sorte aos 19 anos é
algo quase que utópico. Gabriel conseguiu, e torce pela volta da valorização
dos "babas".
- Vale muito a pena. Há muita gente boa escondida aí nas favelas, nas
periferia. Muita gente para encontrar seu espaço por aí.
Gabriel encontrou o dele, e sem abandonar a alma
de peladeiro. Nesta quarta-feira, terá mais um "baba" pela frente. Ao
torcedor do Flamengo, resta torcer para que a Copa do Brasil seja uma reedição
do campeonato da Asbac de 2009. O Atlético-MG que se cuide.
Gabriel leva para os gramados a alegria dos tempos dos "babas" em Salvador (Foto: Dhavid Normando / Agência Estado)
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