quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Peladeiro, sim, senhor! Cria do “baba”, Gabriel relembra origem na várzea

O cenário é de Copa do Mundo, a partida é de semifinal de Copa do Brasil, mas em campo o Flamengo terá um representante genuíno do que há de mais informal e divertido no futebol: as peladas. O barro que levantava poeira a cada arrancada na Ribeira, na Cidade Baixa, em Salvador, deu lugar ao gramado padrão Fifa do Maracanã. Para Gabriel, porém, a sensação de ter a bola nos pés é a mesma. Ao menos, não há mais o risco de voltar para casa sem um tampão do dedão. Realidade que acompanhava até pouco mais de cinco anos atrás um jovem que só queria brincar seu "baba" - como é chamado o futebol de rua na Bahia - e deu início, já aos 19, a uma trajetória que terá um dos capítulos mais importantes nesta quarta, contra o Atlético-MG.

Não faz muito tempo, e Gabriel sequer sonhava em ser profissional. Estudante, aproveitava as brechas nos livros para ganhar uns trocados em campinhos de várzea pela Bahia. O agrado, no entanto, não era uma exigência. Como não foi quando os amigos Léo e Desenho o perturbaram para disputar um torneio em um clube de Salvador. Depois de furar no primeiro convite, foi carregado na porta de casa no seguinte e mudou de vida. Encantado, o então presidente do Bahia, Marcelo Guimarães Filho, o levou para base do clube, em 2009. Era o começo improvável de uma carreira consolidada em 2014 e que terá um dos "babas" mais importantes diante do Galo, no Maracanã.

Vice-artilheiro do Flamengo na temporada, com nove gols, Gabriel é, de longe, o destaque absoluto do outubro rubro-negro. Autor dos gols nas duas vitórias sobre o América-RN, que colocaram o time na semi, parece ter deixado para trás uma inconstância que o acompanhava desde a chegada à Gávea para se tornar figura importante para Vanderlei Luxemburgo. O treinador, inclusive, não tem medido elogios ao camisa 17, mas sempre com a ressalva de que é necessário paciência com quem ainda carrega consigo traços de peladeiro. Origem que o jovem baiano não abre mão e tratou de recordar em visita ao Aterro do Flamengo, reduto dos "babas" no Rio de Janeiro.

Mosaico Gabriel flamengo (Foto: André Durão) 
Gabriel e seu reencontro passageiro com a vida de paladeiro (Foto: André Durão)

- O baba é minha formação no futebol, é minha base, onde aprendi tudo que sei. Claro que falta muito, por não ter feito a base em um clube, mas tenho tentado desempenhar meu futebol com o que vivi na várzea. Jogava em qualquer canto, varanda, rua, em campos também. Bastava ter a bola, em qualquer canto rolava. Tinha aquela rivalidade de amigos, que a gente não quer perder muito, mas também jogava campeonato. Aí, era mais pegado.

Os seis campos de grama artificial do Aterro apresentam condições bem mais próximas das que Gabriel encontra atualmente do que as de onde se moldou em Salvador. O piso, entretanto, nunca foi problema para o jogador. Fominha, se jogava onde quer que fosse, mesmo que fosse necessário sacrificar os próprios pés.

- Esse aqui não é meu piso, não. Meu piso é o barro. Lá era só o barro, o asfalto... Era muita cabeça de dedo indo embora, pisava em prego, mas o mais importante era jogar bola. Essa era a minha felicidade desde moleque. Quando tinha campo de grama sintética, era uma felicidade. 

Gabriel do Flamengo (Foto: André Durão)O "baba" que mudou sua vida era daqueles para valer. Tinha uniforme, regra e até juiz. Famoso na Cidade Baixa pela velocidade nas tabelas e arrancadas em direção ao gol, Gabriel virou reforço no campeonato da Asbac (Associação dos Servidores do Banco Central). Magrelo e de pernas finas, infernizou os adversários. Quem viu não acreditaria que, anos antes, tinha sido dispensado logo no segundo dia de peneira no modesto Fluminense de Feira de Santana. Marcelo Guimarães Filho nem sabia disso, mas pagou para ver aquele talento do "baba" na base do Bahia.

- Com 19 anos era quase impossível, né? Os moleques estão subindo para o profissional com 17. Alguém com 19 sem nunca ter jogado em time nenhum é complicado, mas foi coisa de Deus. Dois amigos que jogavam no time do presidente do Bahia me chamaram. Na primeira semana, inventei uma desculpa, disse que era aniversário do meu pai, e não fui. Na segunda, não teve jeito. Foram na porta de casa e me levaram. O jogo foi 3 a 1, fiz os três, mesmo sendo magrinho e em um torneio pegado. Acho que isso impressionou. Aí, cheguei devagar. Queria mesmo era poder dizer para meus amigos que já tinha jogado no Bahia - recorda o camisa 17 do Fla.

Quilos a mais e dicas de Luxa alavancam sucesso

 Gabriel nem precisou perder tempo contando para os amigos. No juniores, repetia aquilo tudo que impressionou o presidente no "baba". Com menos de um ano, já tinha marcado gol no título estadual de 2010 e sido convocado para os profissionais. Franzino, sofreu com as chegadas mais duras e o ritmo acelerado, mas a transferência para o Flamengo, com apenas dois anos no time de cima, deixa claro que adaptação não foi problema. Já o aprendizado, é constante.

Desde que chegou ao Flamengo, o meia-atacante ganhou mais de 10kg, e convive com conselhos diários da dupla Luxa e Deivid. De ouvidos atentos, Gabriel mantém consigo o espírito da rua, mas sabe que precisa agregar cada vez mais conceitos básicos que não fizeram parte de sua formação. 

- Quando cheguei ao profissional, foi tudo diferente. Achava que os caras eram Super-Homens. Só de tocar na bola eu ficava feliz. Foram pacientes comigo, diziam que eu estava um passo atrás e ia ter que correr atrás do prejuízo. É normal você entender o jogo diferente. Vim da pelada e via muito individualmente. Hoje, vejo que não é assim. Temos que fazer o melhor em prol da equipe, fazer o papel tático. O melhor para o time, não para você. Com o tempo, estou aprendendo cada vez mais. Vanderlei tem me dado oportunidade, me mostra o caminho, e posso ir longe se escutar as ideias dele.

Gabriel do Flamengo (Foto: André Durão) 
O campo do Aterro do Flamengo contou com a presença ilustre do camisa 17 rubro-negro (Foto: André Durão)

A rigidez do futebol tático, por sua vez, tem um limite. E o que foi imposto por Gabriel termina na intermediária ofensiva. Obediente em suas obrigações, principalmente defensivas, ele volta a ser o menino dos campos de barro da Ribeira a medida em que se aproxima do gol adversário.

- O futebol vai muito do improviso também. Chega de uma linha para frente que não dá para ser robô. Da intermediária para frente, é preciso uma tabela, um drible, e quem não teve base, mas jogou na várzea o tempo inteiro, tem uma certa vantagem. Os moleques da base são muito indicados para fazer a parte tática e esquecem das jogadas que decidem os jogos, o diferente. No futebol, temos que ser alegres sempre. Com responsabilidade, mas pensando no prazer de jogar bola, em se divertir.

O profissionalismo do futebol atual tornou raro casos de sucesso como o do rubro-negro. Cada vez mais cedo, jovens promessas são submetidos a decisões definitivas e cobranças precoces por resultados. As oportunidades diminuem, e muito, a medida que a idade aumenta. Tentar a sorte aos 19 anos é algo quase que utópico. Gabriel conseguiu, e torce pela volta da valorização dos "babas".

- Vale muito a pena. Há muita gente boa escondida aí nas favelas, nas periferia. Muita gente para encontrar seu espaço por aí.

Gabriel encontrou o dele, e sem abandonar a alma de peladeiro. Nesta quarta-feira, terá mais um "baba" pela frente. Ao torcedor do Flamengo, resta torcer para que a Copa do Brasil seja uma reedição do campeonato da Asbac de 2009. O Atlético-MG que se cuide.

Gabriel comemora gol do Flamengo contra o américa-RN (Foto: Dhavid Normando / Agência Estado) 
Gabriel leva para os gramados a alegria dos tempos dos "babas" em Salvador (Foto: Dhavid Normando / Agência Estado)
 
 

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