"Ei,
mulher tem de ficar na cozinha, atrás do fogão." Tânia Maria Pereira
Ribeiro tem 40 anos. Cerca de 30 deles foram dedicados ao futebol, do
começo nos campinhos de bairro ao profissional. Nessas três décadas,
passou por vários perrengues. Ouviu poucas e boas, como a frase que abre
esta matéria. Não se abalou. Absorveu as críticas e cresceu. Conquistou
duas medalhas olímpicas – duas pratas, em 2004 (Atenas) e 2008
(Pequim) – e dois ouros em Jogos Pan-Americanos – 2003 (Santo Domingo) e
2007 (Rio de Janeiro).
Tânia Maranhão, como é chamada, em
virtude do seu estado natal, é a nova jogadora do Flamengo – ela é
zagueira. Nesta quinta-feira, em evento realizado no Centro de Educação
Física Almirante Adalberto Nunes (Cefan), no bairro da Penha, Zona Norte
do Rio, foi oficializada a parceria entre o Rubro-Negro e a Marinha do Brasil
para a disputa dos Campeonatos Carioca e Brasileiro feminino deste ano.
As atletas das Forças Armadas vestirão a camisa e representarão o clube
nas competições.
Maycon (esq.) e Tânia Maranhão posam com o treinador, o tenente
Abranches: parceria pelo futebol (Jessica Mello/GloboEsporte.com)
Andréia dos Santos tem 38 anos. Cerca de 20
deles foram dedicados ao futebol. O começo foi mais fácil que o da
colega Tânia. Ainda assim, muito difícil. Natural de Lages, em Santa
Catarina, a meia Maycon, como é chamada, pouco consegue ver a família,
que permanece no interior catarinense. E por ter deixado os estudos de
lado para focar-se integralmente no futebol, teme que seu futuro, após
aposentadoria dos gramados, seja o mesmo que o de muitas colegas de
profissão: esquecidas e com empregos que nada condizem com o esporte.
– Hoje,
as jogadoras que deram início ao futebol feminino caíram no
esquecimento. Esse tipo de jogadora que tinha de estar lá na CBF,
representando o futebol feminino. Mas hoje em dia está no esquecimento,
tem de procurar um trabalho que foge totalmente à trajetória da sua
carreira, no esporte. Tem de mudar totalmente. Tem umas que viraram
motoristas de ônibus (relembre a história de Elane, ex-capitã da Seleção, atualmente motorista do consócio BRT, no Rio),
outras estão vendendo lanche na praia... Você olha e pensa: "Puxa,
daqui a um tempo eu posso estar assim." O futebol feminino é esquecido
no Brasil.
O sonho de ambas é poder continuar trabalhando com
futebol quando não mais puderem ser jogadoras. Tânia, aliás, já ajuda
jovens de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde mora. Ela explica
que as meninas pedem para que a "tia" ajude a formar um time de futebol
feminino na cidade. Mas quer mais: quer ser treinadora. Em agosto, fará
um curso de técnica, pensando no futuro. Maycon, por sua vez, ainda não
tem planos concretos, com exceção de um: quer ficar perto da família de
vez, acompanhar o crescimento dos sobrinhos e cuidar da velhice da mãe.
– Já
tive propostas de ter uma instituição com o meu nome, na minha cidade,
em Santa Catarina. Acho que vai ser por esse caminho mesmo. Quero ficar
perto da minha família, já que me ausentei por tantos anos. Quero poder
curtir a velhice da minha mãe, ver o crescimento dos meus sobrinhos...
Meu projeto em mente é estar lá, mas dentro do esporte – conta a meia.
Tânia Maranhão está há cinco anos na Marinha e, agora, atuará pelo Flamengo (Foto: Jessica Mello / GloboEsporte.com)
– Tenho
um projeto social em Belford Roxo. Eles me abraçaram lá, pois toda
minha família é de São Luís. Trabalho com os garotos da base, com as
garotas, que tanto me pediam: "Tia, monta um futebol feminino para a
gente." Eu vou fazer um curso agora em agosto, tenho o sonho de ser
treinadora de futebol, sim. Porque tudo o que vivemos, o que convivemos,
não podemos deixar de lado, também temos de passar um pouco da nossa
experiência. Acredito que isso ajuda bastante. O que vemos lá fora são
ex-jogadoras como técnicas... Por que não no nosso país dar essa
oportunidade para a mulher? A mulher conhece a mulher, e sabemos da
sensibilidade das atletas – diz Tânia.
O sonho maior de ambas,
no entanto, é poder ver o crescimento do futebol feminino no Brasil.
Poder ver que há incentivo, que há apoio. Não ver nas novas jogadoras o
mesmo sofrimento pela qual elas e tantas outras passaram. De não ter
bons salários, ou quase nenhum salário, de ter de pagar suas próprias
passagens para disputar competições, de ter um time em um mês, e no
outro... Quem sabe?
– O futebol masculino é uma coisa, o
feminino é completamente diferente. O masculino chega mais facilmente
onde ele quer, o teto salarial é maior... O feminino, não. Está todos os
dias lutando para conseguir se manter no trabalho. Não é nem aumentar
salário, porque às vezes você sequer tem salário. Você joga por amor. E
você tem de sempre dar mais do que você deu ontem. Já no masculino, o
que eu estou dando está bom, meu salário está bom... Não prezamos muito o
salário, porque nós não temos isso – fala Maycon.
Tânia
disputou seu primeiro Mundial em 1991, o primeiro organizado para a
categoria, apenas cinco anos depois da primeira partida da seleção
brasileira feminina da história.
– Foi uma época muito difícil.
Praticamente pagávamos para jogar. Era sacrificante. Amava o que fazia,
tinha a paixão. Tirava do meu bolso mesmo. Pagava passagem de ida e
volta. Por isso, dou muito valor ao futebol feminino e acredito que ele
irá mudar no meu país. Fico muito triste ao ver as jogadoras que
começaram, que foram as pioneiras, caindo no esquecimento.
Confira mais trechos da entrevista:
GloboEsporte.com: O que a parceria com o Flamengo ajuda para vocês e para o desenvolvimento do futebol feminino?
Tânia:
(A parceria) claro que ajuda. Aqui, no Rio, vemos que o futebol
(feminino) ainda está carente. Em São Paulo, por exemplo, é mais
evoluído. Cabe a nós agora, junto com a Marinha e o Flamengo, mostrar
que no Rio de Janeiro também tem potência no futebol feminino. O
Flamengo agora, mais do que nunca, é meu clube do coração. Estou muito
emocionada, feliz para caramba.
Maycon: O
suporte do atleta é a família, né? Minha família está muito feliz,
porque somos todos flamenguistas e nunca escondi isso. Já joguei em
equipes rivais, mas eles sempre souberam que era flamenguista de
coração, e nunca fugi da briga, do trabalho. E agora vou poder ter o
prazer de vestir minha segunda pele, desde criança. É uma realização, um
sonho. Os jogadores têm o sonho de jogar em time grande, não? As
jogadoras também sonham em jogar em time grande, em time com as maiores
torcidas, como o Flamengo. Vamos honrar essa camisa.
O que ainda é preciso para alavancar o futebol feminino?
Maycon: Precisamos
sempre de resultados positivos, vinculados à Seleção. E, hoje em dia, a
Seleção não tem mais isso. Foi para o Mundial, não teve resultado
positivo, aí acaba complicando ainda mais para nós aqui. Precisamos que
as empresas olhem para o futebol feminino, que no futuro haverá um
retorno. Não adianta você querer ajudar querendo um retorno imediato.
Primeiro, tem de lapidar tudo, para no futuro colher o fruto. Difícil
entrar alguém para ajudar o futebol feminino. As atletas acabam tendo de
se dedicar ao esporte e não conseguem conciliar o estudo junto, quando
você vê, os anos ficaram para trás e você não progrediu. Eu e a Tânia
tivemos sorte, e também nosso potencial, claro, por termos servido
vários anos na Seleção. A faixa salarial é muito complicada. Na Marinha,
é uma ajuda que nos times ultimamente não tem. É um privilégio estarmos
aqui, mas temos de lutar a cada dia, a cada ano, para nos mantermos
aqui. Só tem atleta de ponta aqui. Então temos de brigar para
permanecer, porque tem muita gente querendo entrar também, muita gente
boa.
Tânia: Como a Maycon falou, de dependermos
dos resultados da Seleção, eu acredito muito, hoje, no projeto que a
Fifa está fazendo. Na nossa trajetória dentro da Seleção, tivemos muito
êxito, apesar de todos os problemas que aconteciam lá. E não queremos só
isso. Queremos ver o futebol no nosso país como é nos Estados Unidos,
na Alemanha, porque temos esse potencial. Pedimos que acreditem. E eu
sempre digo: não vou parar de lutar pelo futebol feminino. Enquanto Deus
me der vida, essa raça, essa vontade que eu tenho, essa dedicação, eu
vou brigar pelo futebol feminino.
Por que não temos treinadoras mulheres no Brasil?
Maycon:
O machismo barra um pouco, né? Há ex-jogadoras que têm suas escolinhas,
têm seus trabalhos, mas não têm a oportunidade de estar lá na Seleção.
Um dos motivos pelos quais a seleção feminina não vai para frente, e não
estou questionando o treinador que está lá nem a metodologia dele, mas
as pessoas que estão lá têm que ser da raiz do futebol feminino, pessoas
que passaram por lá, que sabem como é difícil, que conhecem a luta da
atleta. Não adianta pegar um super treinador que não consiga entender a
atleta. Uma pessoa que seja da raiz, mesmo que seja ajudando na
administração, vai saber lidar, vai entender. Mas aí acontece aquelas
coisas... O futebol masculino é uma coisa, o feminino é completamente
diferente. O masculino chega mais facilmente onde ele quer, o teto
salarial é maior... O feminino, não. Está todos os dias lutando, para
conseguir se manter no trabalho. Não é nem aumentar salário, porque às
vezes você sequer tem salário. Você joga por amor. E você tem de sempre
dar mais do que você deu ontem. Já o masculino, o que eu estou dando
está bom, meu salário está bom... Não prezamos muito o salário, porque
nós não temos isso. Prezamos o que você tem a nos oferecer, o conforto. E
esse conforto temos hoje na Marinha. Tudo o que precisamos, temos aqui.
E agora fortalecendo com o Flamengo então... (risos) Muitas atletas vão
poder realizar o sonho de vestir essa camisa.
Tânia: Isso
é porque no nosso país ainda tem machismo. Tem preconceito. Na própria
CBF... Mas acho que a lavagem que está sendo feita agora, com essas
pessoas novas que estão entrando, há um outro pensamento, outra cabeça. E
com o apoio da Fifa, esse projeto de levar ex-jogadoras para conversar,
trocar ideia, já é um avanço, é algo legal, ajuda. Nossa briga é também
por colocar treinadoras no futebol feminino. É o que precisamos. Temos
de nos espelhar no que dá certo. Lá fora, temos treinadoras mulheres.
Está na hora de brigar por isso, aproveitar que a Fifa está dando essa
abertura. Tenho certeza de que vamos conseguir.
Fico muito
triste ao ver as jogadoras que começaram, que foram as pioneiras, caindo
no esquecimento. Sempre vamos brigar por isso. Elas merecem estar na
Seleção, sim. Em uma categoria Sub-15, ou na Sub-20, Sub-17... Elas têm
capacidade para isso, com a experiência que elas têm. A Marinha faz
correto seu papel aqui, mesclando as atletas. Não pode chegar e tirar
toda a experiência que tem no time, como a CBF fez agora. Deixou só
Formiga, Marta e Cristiane, e botou todo mundo nova. A experiência
conta, sim. Eu mesma falei no Mundial agora: "Gente, a seleção
brasileira não vai passar das oitavas de final." Conhecemos, sabemos o
que significa um Mundial, já estivemos lá, sabemos como é, como é
difícil. Vou brigar sempre pelo futebol feminino, pelas jogadoras que
começaram. Elas têm curso de treinadora. E têm de ter oportunidade, sim.
Jogadoras e comissão técnica do time da Marinha e do Flamengo em lançamento da parceria (Foto: Jessica Mello)
E
o início de vocês no futebol? Até pouco tempo antes de começarem,
tínhamos ainda em vigor a lei que proibia mulheres de jogar futebol
(decreto-lei 3.199, de 1941, regulamentado em 1965, e revogado apenas na
década de 1980)...
Maycon: Sofremos
bastante preconceito. Acho que mais pela ignorância do homem. Hoje em
dia foi superada na parte dos torcedores. Pessoas para ajudar ainda são
muito poucas. As pessoas entram para ajudar só pensando no que vão
receber em troca. Por isso que damos mais valor ainda à Marinha, porque
abriu uma porta para nós, que já estávamos esquecidas. Já íamos ter de
procurar um outro emprego, e encontramos na Marinha um fôlego a mais
para seguirmos na carreira.
Tânia: Escutávamos
muito, dentro de campo, coisas como "Ei, mulher tem de ficar na cozinha,
atrás do fogão." Só que pegávamos isso e transformávamos em energia
positiva. Deixa eles falarem. Um dia vão bater palma para o futebol
feminino. Aquilo servia como força, crescimento, para mostrar que a
mulher é importante, sim. É o mesmo futebol que o masculino, a diferença
é que eles têm mais força e são muito mais valorizados. O futebol
feminino está dando, hoje, mais orgulho que o masculino. Porque o que
manda neles é o dinheiro, está subindo a cabeça. E no futebol feminino,
não. Se você montar um clube e não tiver dinheiro, pode ter certeza de
que vamos honrar a tua camisa do mesmo jeito. O que importa é a paixão
que temos pelo esporte.
Como é a equipe da Marinha?
Maycon:
É uma equipe mesclada. Tem meninas novas, de 20 e poucos anos. E tem as
de 40, como a Tânia, e eu, com 38 (risos). As meninas nos escutam
bastante, a maioria nos viu jogando, então elas são de perguntar
bastante, se preocupam bastante. Se algo está errado, nós falamos, e
elas entendem, escutam. É um feedback muito legal. A vida nos ensinou
tantas coisas, e elas ainda vão aprender tantas mais. Aprendemos muito
com a dor. E elas podem aprender com amor, se souberem ouvir.
Maycon:
Para nós, foi uma fase mais difícil do futebol feminino, mesmo sendo a
catástrofe que é hoje, nós pegamos uma época em que era mais surrado
ainda. Especialmente a Tânia, que pegou o futebol feminino com quase
nada. E olha onde parou. Não está bom, sabemos que não está bom. Mas já
foi muito pior. O futebol feminino no Brasil é esquecido, cai no
esquecimento. A faixa etária da Tânia é das mulheres que mais passaram
dificuldades no futebol feminino. Eu passei dificuldade também, mas já
comecei subindo degraus. Ela, não. Teve um piso todo ainda a percorrer,
para só depois começar a subir degraus. Hoje, as jogadoras que deram
início ao futebol feminino caíram no esquecimento. Esse tipo de jogadora
que tinha de estar lá na CBF, representando o futebol feminino. Mas
hoje em dia,está no esquecimento, tem de procurar um trabalho que foge
totalmente à trajetória da sua carreira no esporte. Tem de mudar
totalmente. Umas que viraram motoristas de ônibus, outras estão vendendo
lanche na praia... Você olha e pensa: "Puxa, daqui a um tempo eu posso
estar assim." Foi uma fase muito ruim por que passamos, pois não
conseguimos conciliar o futebol e o estudo. Em um mês você estava em um
time, em outro mês estava em outro time. O mesmo time estava em uma
cidade, aí ia lá, mudava só a camisa, mandava para outra cidade,
mantinha o time... Era complicado. Hoje, sabemos que será difícil,
porque o nosso estudo ficou muito a desejar.
Como é o calendário da equipe da Marinha?
Maycon:
A Marinha sempre tenta fazer parceria com algum clube para nos colocar
em atividade. Para ajudar o esporte e nos ajudar. Disputaremos agora o
Carioca, o Brasileiro e a Copa do Brasil. Em outubro, tem o Mundial
militar, é como as Olimpíadas. Vamos com tudo. Para você ver como a
Marinha nos ajuda. Esperou quatro anos para disputar esse Mundial, nos
mantendo. Não é só o futebol feminino que passa por isso, é o esporte em
geral.
Há quantos anos vocês estão na Marinha?
Maycon: Estou
há seis anos. Estou indo para o sétimo. Para mim, é um prazer estar
aqui. A Marinha abriu uma porta para o futebol feminino que estava
fechada. Então, sempre vemos aqui uma luz no final do túnel. O projeto
que temos aqui é maravilhoso. Em clube de futebol feminino, é difícil
ter o que temos aqui dentro.
Tânia: Estou há
cinco anos. Vou fazer seis anos em fevereiro. A Marinha é o sonho de
qualquer ser humano, colocar uma farda. De suma importância, por ter
aberto as portas para o futebol feminino. Só temos a agradecer, por tudo
o que eles fazem por nós. A estrutura aqui, nem times de primeira ou
segunda divisão às vezes, tem. A Marinha está de parabéns pela
continuidade do projeto, não só do futebol, mas de vários esportes
também. Agora, mais uma alegria que a Marinha nos dá, fazendo esse
contrato com o Flamengo.