Foram deixadas para trás mais de três décadas desde que Zico se tornou expoente de um vitorioso time formado, em sua essência, por jogadores criados no Flamengo. Anos de amargura, jovens promessas desperdiçadas e discurso repetido para vencer eleição de que o clube precisaria e voltaria, sim, a formar craques. Do papel, quase nada saiu, efetivamente. Contava-se apenas com a vontade e a paixão de uma dúzia de garotos bons de bola quererem se aventurar pela maltratada base da Gávea. Ao que tudo indica, porém, a gestão atual de Patricia Amorim se propõe a desenhar, já na prática, uma maneira de fugir do sonho para entrar de vez na realidade.
O caminho é longo. Muito longo. Em seis meses de trabalho incessante de dois diretores, designados para coordenar o projeto, pouco mudou estruturalmente. Os obstáculos financeiros, sobretudo, e até políticos são tormentos semanais. Dividido em duas reportagens, nas quais Carlos Brazil, diretor administrativo, e Carlos Noval, diretor geral da base, esmiuçam mais de 20 páginas de um caderno recheado de ideais e choque de gestão, assinado embaixo pela presidente rubro-negra, esse especial busca mostrar ao torcedor o que está sendo planejado, além de campanhas abertas para arrecadação de dinheiro para o CT, para que o Flamengo enfim "resgate a credibilidade" e se equipare a rivais em algo ainda mais importante que apenas o nome poderoso.
Muitos atribuem ao Galinho, ex-diretor executivo, a criação da inédita equipe que conta agora com observadores espalhados pelo país, psicólogos, gerentes e mais profissionais ligados à área técnica. Na verdade, Patricia escolheu a dedo Brazil e Noval bem antes, lhes deu carta branca para avaliarem o "estrago" causado pelo atraso e solicitou que preparassem um dossiê para que tudo começasse do zero.
- Quando Zico chegou, já tínhamos até pronto o material, que foi repassado a quem tinha interesse dentro de cada área: técnica, financeira e administrativa. Foram semanas e semanas de preparação. Na mesma hora, Zico aprovou, foi nota 10 conosco e se prontificou a ajudar no que fosse preciso. Se ele, que tanto cobrava ação nesse sentido, se animou, é porque estávamos no caminho certo. Não sabemos ao certo as condições e o respaldo anteriores, por isso não cabe criticar. Mas o que encontramos aqui era um caos - apontou Carlos Brazil.
Primeiros passos
Da falta de simples registros de parte da garotada que treinava no clube a alojamentos superlotados no Ninho do Urubu, a varredura teve partida. A primeira parte do projeto de batismo simbólico "Craque o Flamengo continua fazendo em casa" (em alusão ao que já se tornou um jargão), justamente o foco desta primeira matéria, era a de ações imediatas, quase urgentes, que precediam melhorias para conforto.
- Havia jogadores misturados por categoria dividindo quarto e alguns, já entre os juniores e sob contrato profissional, podiam alugar seu próprio apartamento, o que foi feito por seus respectivos empresários. Demos prioridade aos mais jovens, que só contam com ajuda de custo. Além disso, documentamos entradas e saídas dos meninos, como também tivemos de reduzir o excessivo número deles nas categorias. Não adianta iludir e não dar a oportunidade - ressaltou Carlos Noval, conhecido no clube como Bigu.
A valorização da qualidade técnica do boleiro, como não poderia ser diferente, é o carro-chefe para a seleção entre tantas opções e, claro, sua sequência nas categorias posteriores. Mas quando a dupla fala em formar homens, não parece ser da boca para fora. Medidas disciplinares foram adotadas (veja o infográfico abaixo), com ajuda de um número maior de pessoal para supervisionar, e definiram até mesmo certas dispensas.
- O futebol é atrelado ao mercado e à imagem, por isso os jovens jogadores têm de aprender a se comportar como atletas de alto rendimento. Já proibimos o uso de boné e brincos no ambiente de trabalho e exigimos que se apresentem para as partidas sempre com o uniforme completo, que antes não era cedido. Dispusemos em algumas ocasiões do Urubuzão (ônibus estilizado geralmente utilizado pelos profissionais) para que eles vejam que o Flamengo tem de ser levado muito a sério desde já - afirmou Carlos Brazil, sem deixar de lado os estudos.
- Checamos que alguns não estavam matriculados na escola. Para ficar aqui, isso precisou mudar, é regra, faz parte do nosso raio-x e está sendo seguido. Depois, será avaliado o desempenho de cada um deles. Os meninos que forem bem na escola ganharão prêmios. Assim, se não derem certo como jogadores, eles ao menos terão a perspectiva de um futuro melhor - alertou.
Todo esse know-how não foi adquirido da noite para o dia. Antes de pôr em prática a nova cartilha rubro-negra, que não funciona tal qual um regime militar, destacam os diretores, houve reuniões com os outros três clubes grandes do Rio e também contatos telefônicos com gerentes da base dos principais centros do país, como os construídos por Inter, Santos e Cruzeiro, e com empresários e publicitários do ramo esportivo.
A ponto de o Flamengo ter convidado o desembargador Siro Darlan, durante muitos anos titular do Juizado de Menores, para redigir um minirregulamento especial interno de modo que as práticas estivessem de acordo com o que prega a legislação brasileira.
Carinho especial com o Ninho
Não faz muito tempo que as falhas de infraestrutura foram acusadas de serem a vilã da perda de gerações inteiras do Flamengo. O torcedor mais atento sabe que talentos anunciados como Vander, Kayke e Renan Silva, de 1988-89, não vingaram por não terem tido acompanhamento mais apropriado de seu crescimento, físico e técnico, e também pela falta de orientação disciplinar.
- São investimentos indispensáveis. Se não fizermos direito, é jogar o trabalho no ralo. Existe uma enorme preocupação em não queimar mais nenhum garoto. Muitos já foram perdidos sem que o clube ganhasse nada. Precisamos resgatar a credibilidade do Flamengo, e o passo do fortalecimento da base é dos mais importantes. É raro termos um time campeão sem ligação com o clube, jamais houve nada como o início da década de 80. Ano passado (título brasileiro) foi uma exceção, só tínhamos o Adriano formado aqui. Só que as coisas foram dando certo e havia outros que vestiam a camisa e sabiam o que era o Flamengo há muito tempo, como o Pet, o Juan, o Léo Moura, o Angelim... - avaliou Patricia Amorim.
De olho no futuro, o Ninho tem planos para não servir somente para receber as principais estrelas. Da área de 140 mil metros quadrados do terreno, um terço terá um módulo, com alojamento, vestiários e escritório para a garotada, que hoje já nota evolução, como a reforma dos dormitórios atuais, começo do asfaltamento do local e o aluguel de contêineres, que serão úteis provisoriamente, enquanto as novas estruturas não começam a ser erguidas.
Contratado ao arquirrival Vasco em fevereiro, o volante Muralha elogiou o esforço da diretoria para providenciar mais condições.
- Já dá para sentir a diferença da organização. O pessoal tem comentado que isso facilita o nosso dia a dia. Dei sorte de, quando vim para cá, depois de não acertar meu contrato com o Vasco, ter encontrado o Flamengo em um momento diferente. Espero que continue assim - disse a promessa, atual campeão estadual juvenil, que antecedeu um número razoável de contratações, um capítulo que ainda tem gerado polêmica, em virtude de Zico ter costurado uma parceria com o CFZ, clube que fundou e é presidido por um de seus filhos.
O acordo já nem existe mais, só que o Conselho Fiscal do Rubro-Negro não desistiu de tentar encontrar irregularidades na transferências de alguns jogadores, sob a suspeita de que a família Coimbra teria lucrado. Fato que nem resvala em Brazil e Noval.
- Trouxemos quase dez jogadores, muito bons, por sinal, de vários lugares. Tem do Inter (Ivan), do Rio Branco-SP (Raúl), do Sport-ES (Mateus). Fruto do trabalho de observação, então nem vale entrar nesse mérito. São questões políticas do clube, é uma pena que isso volte à tona desse jeito, pois o Flamengo só ganhou em qualidade com a parceria - avalia Brazil.
Confira nesta sexta-feira, a segunda e última matéria sobre o futuro das categorias de base do clube e seus projetos a médio e longo prazo, o desabafo da presidente Patricia Amorim quanto ao primeiro ano de sua gestão, orçamentos previstos e desdobramentos em marketing da utilização do CT de Vargem Grande e sua história.
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