No peito, resiste a saudade do subúrbio, mais precisamente de Marechal Hermes, onde foi criado. Na mente, uma convicção, quase obsessão: conquistar a Libertadores pelo Flamengo. Também da infância, Deivid guarda a dor da perda da mãe, da qual nem pôde acompanhar o funeral, por conta de uma proibição médica. Dias antes da morte da pessoa mais importante de sua vida, o atacante havia quebrado a perna. Naquele momento, pensou em parar, largar tudo.
Mas, como antídoto para a saudade, seguiu em frente, fez fama e fortuna. Nesta entrevista exclusiva ao LANCENET!, Deivid, estreante de domingo, abre o jogo, fala com sinceridade da má impressão transmitida pelo futebol carioca, da falta de estrutura nos clubes do Rio, de sua admiração por Luxemburgo, e, claro, do Rubro-Negro, paixão de uma vida inteira.
LANCENET: Conte como foi a negociação para acertar com o Fla?
“O Zico me ligou no fim de abril. Disse que tinha recebido convite da Patricia Amorim, que havia resolvido assumir o Flamengo e que gostaria de contar comigo. Expliquei que havia recebido propostas de clubes de São Paulo, Minas, Sul e daqui do Rio. Disse que, se fosse um projeto bom e vencedor, aceitaria. Ele garantiu que montaria um time forte, para conquistar o Brasileiro. Por conta da credibilidade dele, decidi rescindir com o Fenerbahçe.”
L: Qual seu objetivo maior no Rubro-Negro?
“O ponto alto seria conquistar a Libertadores, já que o clube está sem vencê-la desde 1981. É um título que ficará marcado. Sonho em conquistá-lo, lógico. É um título que ainda me falta.”
L: O Flamengo ainda tem chance de conquistar o Brasileiro?
“Claro. Mas temos de fazer a diferença em casa, onde não podemos perder e, fora, ganhar um ponto, às vezes três. Isso tem de começar a partir deste domingo. Estou pronto. Senti um pouco, mas é normal.”
L: Você já disse diversas vezes que é flamenguista. Ia muito ao Maracanã torcer, quando criança?
“Quando o dinheiro dava, né? Morava no subúrbio e tinha de guardar grana para tomar café da manhã, antes de treinar. Quando dava, pegava o Japeri (trem) e ia. Acompanhei muitos jogos pelo radinho também. Gostava de ver o Romário. Lembro até daquele jogo em que ele brigou com o Cafezinho (ex-jogador do Madureira). Vim jogar pelo juvenil do Nova Iguaçu, aqui na Gávea, e assisti àquele jogo. Vai ser legal vestir a camisa pela qual sempre torci.”
L: Qual foi o momento mais difícil de sua carreira?
“Quando quebrei a perna e perdi a minha mãe. Quebrei a perna em um dia e ela morreu seis depois, isso há dois anos. Nem pude vir ao velório, pois o médico disse que poderia dar uma embolia, uma trombose. Ele disse que o risco de morte era de 90% a 100%. Vi que o dinheiro não traria minha mãe de volta. Ela foi meu pai e minha mãe. Perdi meu pai muito cedo, com apenas dois meses. E ela, com sete filhos em casa, virando-se com quinhentos reais por mês. Fui pobre, mas com educação e respeito.”
L: Fale um pouco da sua infância, em Marechal Hermes?
“Eu, minha mãe e meus seis irmãos morávamos em um quarto e sala. Mas tenho saudade. Soltava pipa, jogava bola de gude, rodava pião, jogava futebol descalço. Sinto saudade daquele ar, da vaquinha para comprar cerveja. Meu filho não vai ter a infância que tive. O que é normal. Hoje, a molecada quer jogar videogame e ficar na internet. Vejo crianças de 14 anos chegando em casa às seis da manhã. Eu, com 16, tinha de estar em casa às 19h. É diferente. Minha infância foi muito boa. Não a troco por nada.”
L: Como você encara a relação entre jogador de futebol e balada?
“Não sou contra. Cada um faz o que quer. Gosto de sair para jantar com a família, de ir para a balada, mas sei o momento certo, até onde posso ir. Sei da responsabilidade que tenho com o clube e a família. Não adianta seguir um cara solteiro. Sei o meu limite. Não sou santo. Gosto de tomar a minha cerveja, mas com responsabilidade.”
L: Como conseguia dinheiro para se divertir, na juventude?
“Eu fazia tudo. Cheguei a vender churrasquinho, milho, pipoca, colocar entulho para fora, carregar terra, pedra e areia. Dificilmente ia à praia, por exemplo. Para conseguir isso, tinha de passar por baixo da roleta ou dar calote. ”
L: Esperava encontrar uma estrutura melhor no Fla?
“Não. Sabia que o Flamengo vem assim há muito tempo. Tanto que o Zico falou que um dos seus objetivos é fazer um centro de treinamento. Comentávamos no Fenerbahçe, até quando o Zico era o treinador, como que o Flamengo e o Corinthians não têm um estádio? Isso eu não consigo entender. O que o Flamengo tem de torcedores é uma coisa impressionante. O próprio Cristian (volante) comentava que o Flamengo era um clube bom de se trabalhar, tinha um ambiente bom, mas que não tinha estrutura.”
L: A estrutura é determinante para um time ser campeão?
“Não. Se fosse, São Paulo e Cruzeiro seriam campeões todo ano. O que ganha título é time bem montado, bem taticamente em campo.”
L: Qual o melhor treinador com o qual você trabalhou?
“Vanderlei Luxemburgo. O cara consegue tirar o máximo do jogador só com uma conversa ou um vídeo. Isso já aconteceu várias vezes comigo e com outros jogadores também. Ele é fera”
L: O jogador brasileiro perdeu credibilidade porque sai daqui já pensando em voltar?
“Perdeu um pouco, sim. Por isso, os argentinos são muito mais valorizados. Basta pegar a cotação deles no mercado europeu para perceber isso. Já vi vários que batem e voltam. Isso é ruim para nós. Os jogadores brasileiros não têm uma boa imagem na Europa.”
L: A imagem do futebol do Rio mudou, em sua opinião?
“Quando um jogador recebia uma proposta de um clube do Rio, pensava dez vezes antes de vir. Além da falta de estrutura e do atraso nos salários, os jogadores que atuavam no no Rio tinham fama de treinar pouco e de querer saber somente de praia. Com a vinda para cá de Muricy, Zico, Deco, Belletti, Emerson, Adriano e Vagner Love, entre outros, essa imagem mudou. Mas ainda falta alguma coisa. É só pegar os títulos que os cariocas ganharam de 2000 para cá. Foram apenas dois, enquanto os paulistas...”
L: Sua intenção era cumprir o contrato com o Fenerbahçe. Por que mudou de ideia?
“Aceitei a proposta do Flamengo porque foi legal para mim, para o clube e para o Fenerbahçe. O Zico falou que faria um grande time para conquistar o título brasileiro. E que tinha um projeto para ganhar a libertadores.”
L: Em algum momento pensou em parar de jogar futebol?
“Pensei sim. Quando jogava no Nova Iguaçu, passei um período que não tinha dinheiro para treinar. Pensei em ajudar a minha mãe, em ir trabalhar, mas ela não deixou. Falava para eu ir atrás dos meus sonhos. Caso não conseguisse, era porque Deus não quis. Ela pedia para eu ir até onde pudesse. Tenho certeza que onde ela estiver, estará feliz, porque fez de tudo para eu chegar até aqui.”
L: Foi difícil a sua adaptação ao futebol europeu?
“Quando saí do país, tinha 23 anos. Não estava bem preparado. Quando fui para a França, minha esposa estava grávida. Fui naquela: vou levantar um dinheiro, se amanhã eu quebrar uma perna, já tenho umas economias guardadas. Depois fui para o Bordeaux. Meu corpo estava lá, mas minha cabeça, aqui no Brasil. Não me arrependo. Apesar da dificuldade, foi uma grande lição de vida aquela experiência na Europa.”
L: Alguns jogadores já discutiram por conta de brincadeiras envolvendo dinheiro. O que você acha dessa polêmica?
“Acho uma palhaçada. É somente brincadeira. Veja o Roberto (Carlos). Ele é muito brincalhão. Por isso aquela história do relógio (certa feita o lateral disse que seu relógio era mais caro do que um apartamento). Para falar alguma coisa, tem de conhecer a pessoa. Um dia, o Vampeta ficou puto, chegou no ônibus e disse, para mim: “Sai daí, ô juvenil, porque eu ganho mais do que você”. Mas foi em tom de brincadeira. Nada me magoa. Não tenho inimigos. Faço amigos. Sempre vejo o lado positivo das coisas.”
L: Vai dedicar seu primeiro gol pelo Flamengo a alguém?
“Não gosto de prometer nada para a torcida. Prometo mesmo é muita vontade, raça e determinação. Mas, quando marcar pela primeira vez, vou dedicar para minha mãe. Ela não está aqui, em vida, mas tenho certeza de que onde estiver ficará muito feliz.”