Nos últimos dias o mercado tem andado meio movimentado, pelo menos no ramo da boataria e das informações desencontradas.
Houve quem dissesse que o Flamengo iria
comprar a parcela do Cruzeiro dos direitos econômicos de Kleber, para
apressar ou mesmo concretizar sua contratação. Bobagem.
Há quem diga que o clube vai comprar ou
vender metade ou outro percentual dos direitos federativos de um
atleta. Sem chance, essa possibilidade não existe.
Vamos, então, dar uma olhada básica,
bem sumária, sobre esse tema. E já aviso: tem uns “engenheiros
jurídicos” que parecem capazes de dar nó em pingo-d’água e tem uns
teretetês por aí que eu, sinceramente, desconheço. Então, vamos ao
básico, mesmo.
O direito federativo
Direito federativo é único e só pode
ser detido por um clube devidamente registrado – ou seja, nenhum
empresário, agente, grupo econômico ou qualquer outra coisa que não seja
um clube de futebol, em dia com as federações da vida, pode ter direito
federativo de algum atleta. Devido ao seu caráter único, não cabe, em
momento algum, dizer que “o clube X é dono de y% dos direitos
federativos do atleta Fulano”. Se, mesmo assim, alguém falar em
percentual, um clube sempre terá 100% dos direitos federativos de um
atleta. Consequentemente, o plural “direitos federativos” só se aplica
se estivermos falando de dois ou mais jogadores.
Querem ver a prova disso:
Imaginem que o Flamengo compra 50%
dos direitos federativos de Carlitos Tevez e os outros 50% fiquem com o
Manchester City. Os dois clubes teriam direito a inscrever o jogador, na
CBF e na FA. E o pobre Carlitos teria que comprar um caça supersônico
aposentado – da USAF ou, mais facilmente, da Força Aérea Russa – como um
Mig 23, por exemplo, devidamente desarmado e com o espaço das armas
tomado por combustível, e usá-lo quase uma vez por dia, para poder
cumprir os compromissos cá e lá.
Meio que sem chance, não?
Outro ponto importante: direito
federativo, ao contrário do antigo passe, não é eterno, ele tem a
duração do contrato assinado entre o atleta e o clube. Findo esse prazo,
o jogador está livre para procurar outro emprego.
E se o jogador estiver emprestado?
A mesma coisa: o clube que recebeu-o
emprestado terá o direito federativo, ou seja, 100%, desse atleta,
durante o prazo ce seu contrato com o clube onde joga emprestado. Para
ficar claro: um jogador é emprestado a outro por 6 ou 12 meses.
Primeiro, isso é possível porque seu contrato com o clube que detém seu
direito federativo tem uma duração superior à do contrato ou empréstimo
ou, pode acontecer, idêntica. Se o contrato do atleta tem validade de
mais 24 meses, digamos, ele pode jogar em outro clube por qualquer
período inferior ou no máximo igual a esse.
Direito federativo, portanto, é uma
coisa efêmera, mera decorrência de um contrato de trabalho entre um
atleta e um clube. Findo o contrato, finda a figura do direito
federativo, que voltará a existir no momento em que o atleta assinar
outro contrato com outro ou com o mesmo clube.
Por fim, direito federativo só pode ser negociado de um clube para outro. Isso já ficou claro no texto, mas não custa ressaltar.
Adendo: a Multa Rescisória
Ela é sempre alta, mesmo para clubes brasileiros.
Como diz o nome, ela é uma penalidade financeira para quem rescinde
um contrato de forma unilateral. Há algumas controvérsias, mas o caminho
mais correto e menos sujeito a interpelações judiciais é o clube
interessado repassar o dinheiro da multa à parte interessada em
rescindir o contrato, o jogador, e este pagar a multa e ficar liberado
para assinar compromisso com o outro clube. Claro, que isso numa
situação de conflito (como já aconteceu). De maneira geral, chega-se a
um acordo civilizadamente, e o interessado paga o valor total da multa e
parte com seu novo contratado em busca do “felizes para sempre”.
Os direitos econômicos
Opa, a primeira diferença já aparece no
título: direitos econômicos – no plural, porque mais de uma entidade
pode deter os direitos econômicos de um atleta.
Se o direito federativo só existe
enquanto existir um contrato, o direito econômico só existirá se um
atleta for negociado de um clube para outro durante a vigência de seu
contrato. É essa transferência que dá “vida” ao direito ou direitos
econômicos.
Para ficar claro, vamos pegar um exemplo concreto: o affaire Kleber/Palmeiras/Flamengo/Cruzeiro.
O Cruzeiro negociou a transferência do
atleta para o Palmeiras. Provavelmente, devido ao valor não ser o
desejado, o clube das Alterosas e o da Pauliceia concordaram que, em
caso de transferência do atleta 50% dos direitos econômicos aí gerados
seriam do Cruzeiro. Em termos práticos, o Cruzeiro não tem poder algum
sobre o jogador ou sobre o Palmeiras, nada, exceto no caso do Palmeiras
negociá-lo. Nesse caso, o clube mineiro terá direito à metade do valor
do negócio.
E se o Kleber se aposentar no Palmeiras? Ou sofrer um acidente?
Bom, não conheço o contrato, mas ele
pode ou não ter uma cláusula de compensação para o Cruzeiro, algo como:
se o atleta não for negociado nos próximos x meses, caberá à Sociedade
Esportiva Palmeiras o pagamento de um valor indenizatório ao Cruzeiro
Esporte Clube no total de y reais. outra cláusula que os podem ou não
ter acertado é o valor mínimo de transferência ou um valor mínimo para
essa complementação do negócio para o Cruzeiro.
Quanto ao risco de um acidente e um
encerramento precoce de carreira, é possível, mas não sei se provável,
que haja um seguro cobrindo ambos os clubes.
E a história que o Flamengo compraria a
parte do Cruzeiro? Se verdadeira, e duvido que seja, seria inócua. O
clube poderia comprar até mesmo os direitos econômicos da parte do
Palmeiras e nada aconteceria, a menos que o alviverde cedesse, por
contrato, seus direitos federativos sobre o atleta.
Os parças dos direitos econômicos
Parece que “parça” está na moda, não? Então, vamos a eles, os parças que usufruem dos direitos econômicos.
O primeiro, e já bastante comum, é o
próprio atleta. Jogadores jovens, principalmente, de repente fazem
sucesso, chamam a atenção e têm contratos com baixos valores de multas,
além, é claro, de baixos salários. Nesse momento, os clubes correm e
oferecem novos contratos, com salários maiores e, o que de fato importa,
multas contratuais altíssimas.
Ora, jogador não é bobo e empresário menos ainda. Nessa circunstância, o primeiro item a ser negociado é “quantos porcento vão ficar pro meu garoto?”
e só depois vem o salário. Dessa forma, é comum um atleta jovem ser
dono de 30% dos direitos econômicos de sua futura transferência. É,
também, bastante comum que ele venda uma parte desse percentual para seu
empresário, recebendo dinheiro vivo que vai para a compra de uma casa
para os pais, um carrão zero para ele y otras cositas más. Vejam, por
exemplo, o caso de Paulo Henrique Ganso: 45% de seus direitos econômicos
são do Santos, outros 45% do DIS e 10% do próprio atleta.
Empresários também são donos de
parcelas de direitos econômicos, embora a FIFA tenha algumas restrições.
Dependendo da pobreza da família do atleta e de suas necessidades
imediatas, não é incomum um empresário adiantar meio milhão de reais ou
mesmo um milhão em troca de 10, 15, 20% dos direitos econômicos do
atleta, que muitas vezes irão se transformarem 3, 4, 5 ou mais milhões
de reais.
Há também empresas no negócio, como
parece ser o caso da Unimed e agora do banco patrocinador de mais de dez
clubes da Série A. Nos dois casos, mas principalmente no caso do banco,
temos uma mistura de papeis que, ao menos na minha visão, deveria gerar
muita preocupação.
É isso.
O passe, felizmente, acabou, foi jogado
no lugar de onde nunca deveria ter saído: a lata de lixo. Sua
existência moldou o mundo da bola por décadas e décadas. Prendeu
jogadores, enriqueceu clubes que empobreceram ainda mais do que
enriqueceram. Há, ainda, quem lamente sua extinção. É quase como
lamentar o fim da escravidão, guardadas as proporções devidas.
O jogador hoje tem liberdade para
trabalhar onde quiser. Sua obrigação é cumprir o contrato. Porém, como
bem sabemos, contratos são sujeitos a pressões e mudanças. Pode não ser
bom, mas é assim que é.
Compete aos clubes melhorarem suas
gestões e acompanharem com mais atenção e rigor tudo que se passa com
seu principal patrimônio depois da torcida: os seus jogadores.