Sem contar as bandeiras e a rivalidade que atravessam os
tempos, a única semelhança entre o primeiro Fla-Flu do novo Maracanã,
neste domingo, às 16h, e a decisão do Carioca de 1963 é a cor da bola —
entre o marrom e o laranja. Tida nas universidades como um prodígio da
engenharia brasileira, a marquise de concreto, livre de pilares, foi
condenada por critérios técnicos. O vestiários subterrâneos, que
anunciavam a erupção da mística vinda do centro da terra, estão
soterrados na memória. A livre movimentação das massas ficou bloqueada
pela nova ordem, em que o esporte é o braço forte da indústria do
entretenimento. Por mais moderna que seja, a operação jamais chegará a
números que eram contabilizados manualmente. O drama da falta de gols
naquele Fla-Flu que completará 50 anos no dia 15 de dezembro foi
amplificado pelo excesso de gente a testemunhar a conquista rubro-negra.
Mesmo que o clássico de hoje ocupasse os 78.838 lugares do estádio
reformado, seria preciso mais um Maracanã e meio para comportar os
194.604 presentes ao clássico de 1963, que estabeleceu o recorde mundial
de público num jogo de clubes.
Com carga total de 53.540 ingressos, Fla-Flu e o Maracanã de hoje estão reduzidos a quase um quarto do que já foram um dia. A quantidade de lugares não tem relação direta com os ganhos financeiros. Em 1963, 177.656 pagaram para produzir arrecadação de 57.993.500 cruzeiros, que correspondem hoje a R$ 562.842,20, segundo a variação do IPC da Fipe no período. Pela mesma conversão, o ingresso médio custava R$ 3,16. Pelo IGP-DI, da FGV, que considera oscilação de produtos da pauta de exportação e não apenas os bens e serviços ao consumidor, a renda seria de R$ 1.985.675,53, com ingresso médio de R$ 11,7. Qualquer que seja a metodologia, a maior diferença está na comparação com os valores atuais. Com ingresso mais barato a R$ 100, o primeiro jogo do Flamengo no novo Maracanã, no empate em 2 a 2 com o Botafogo, teve 38.835 pagantes e renda de R$ R$ 3.082.555.
Bola erguida como troféu
Embora o futebol avance com a gestão profissional, algumas ações representam o atraso. Mesclada por cores que se fundem numa mancha alaranjada, a atual bola do Brasileiro lembra como era difícil visualizá-la nos tempos em que a tonalidade era produzida apenas pelo beneficiamento do couro. Com cabeças e corações pulando fora do lugar, a visão ficava ainda mais comprometida naquela tarde em que o Flamengo jogava pelo empate para ser campeão. No último lance do jogo, Escurinho entrou livre e tentou encobrir Marcial, que defendia o gol à esquerda das cabines de rádio. Do lado oposto, a torcida tricolor já gritava gol naquela fração de segundo que leva uma eternidade até o balançar das redes confirmar o êxtase.
— Vi que ia me encobrir, ameacei sair e voltei. A bola sumiu para quem estava do outro lado. Ficou todo mundo procurando, até que levantei a bola. Estava na minha mão — diz Marcial, 72 anos, ao lembrar o lance em que ergueu seu troféu particular. — Dizem que goleiro não ganha jogo, mas esse acho que ganhei. Um técnico folclórico em Minas dizia: “Futebol é igual guerra; quem ganha, vence.” Só por isso se lembram de mim até hoje.
Com 22 anos à epoca, Marcial abandonou o futebol quatro anos depois para concluir o curso de medicina na Universidade Federal de Minas Gerais. Criado pelos tios numa fazenda nos arredores de Uberlância, já havia defendido o Atlético-MG antes de encerrar a carreira no Corinthians. Como só poderia ter a matrícula trancada por cinco anos, teve de retomar os estudos sob pena de ter de prestar vestibular novamente. No sentido contrário do termo, que representa um cartão vermelho no mundo acadêmico, foi jubilado com honras ao deixar os gramados como um herói rubro-negro. A distância entre mundo da academia e do futebol não o impediu de se sentir à vontade nos dois.
— Achava a turma do futebol mais inteligente que os colegas da faculdade. Para chegar à bola, um goleiro tem que calcular bissetriz, velocidade, ângulo. O Garrincha eram inteligente pra burro, não apenas para as situações de jogo, também para botar apelido e brincar com os outros — recorda, antes de falar do Rei. — Quando Pelé inteirou mil gols, 1% era meu. Pelo menos, nenhum gol marcado por ele era frango. Teve uma falta, com o campo molhado, que passou debaixo da minha barriga. No dia seguinte estava no jornal que o Pelé cobrou a falta inteligentemente por baixo do grande Marcial.
O maior de todos era o Maracanã. Com 19 anos em 1963, Carlos Alberto Torres entrava no templo para um ritual de batismo. A derrota na primeira decisão da carreira serviu para completar seu processo de vacinação. Em 1969, era um dos líderes da seleção brasileira que se classificou para a Copa do Mundo ao vencer o Paraguai por 1 a 0 diante de 183.341 pagantes. Como técnico do Flamengo, celebrou o título brasileiro em 1983 com 155 mil rubro-negros.
— A gente volta no tempo e vê que tudo isso valeu à pena — diz, antes de trocar a saudade pelo entusiasmo diante das mudanças. — Tudo evolui. Sou a favor de que as pessoas de bem tenham prazer de sair de suas casas para ir ao estádio. Só não concordo com o aumento tão grande do preço dos ingressos, porque tira a força do nosso futebol, que está no torcedor.
Os gritos de outrora ainda servem de estímulo para ir além. Recuperando-se de um acidente vascular cerebral, Nelsinho Rosa, ex-ídolo do Flamengo e técnico campeão brasileiro de 1989 pelo Vasco, ainda escuta a vibração daquele jogo como uma música de Roberto Carlos, com arranjo de cordas do seu companheiro de meio campo no Fla, Carlinhos, o Violino
— Belas tardes de domingo, quantas alegrias — cita a canção do Rei, ao lembrar que o ar do futebol era mais puro. — As torcidas se misturavam. Não havia tanta violência dentro ou fora de campo. Tanto que eu e Carlinhos ganhamos o Prêmio Belfort Duarte (dado a jogadores que ficavam dez anos sem levar cartão vermelho).
Além da distinção concedida aos mais disciplinados, os jogadores também competiam por dinheiro. No dia seguinte à conquista, Marcial cobrou do presidente rubro-negro Fadel Fadel o pagamento integral da premiação, embora o clube oferecesse a metade, sob alegação de que o jogo terminara empatado.
— Diante dos jornalistas, ele disse: “A gente está preparando as faixas, e você vem falar de dinheiro?” Respondi que, quando eu parasse de jogar, não iam me vender nada no açougue se eu só levasse a faixa
Mãos firmes para aliviar a dor
Ao trocar a camisa escura pelo jaleco branco, Marcial continuou a produzir em seus pacientes a mesma sensação que oferecia às multidões. Para torcedores dos times mais populares do país ou para os pacientes da rede pública, o alívio está nas luvas do goleiro que virou anestesiologista
— Minhas mãos nunca tremeram — disse, ao voltar à concentração rubro-negra, no Hotel Paineiras, nos momentos que antecederam à decisão. — Eu estava dormindo antes de a gente descer para o Maracanã.
O contraste entre a vida bucólica e as tensões urbanas não marcavam apenas a rotina de Marcial, que morava na Rua dos Oitis, na Gávea, tomava chope no Hipódromo, conhecido como bar do português Américo, e fazia uma feijoada para jogadores nas segundas-feiras de folga. Em dezembro de 1963, o Brasil vivia o último verão de liberdade antes do golpe militar. O sopro de otimismo nacionalista, com as conquistas da seleção e a bossa nova, dariam lugar a um atmosfera sufocante que já tomava conta do Maracanã naquela tarde por outras razões. Com o futebol, logo a política levantaria as massas numa versão analógica das manifestações que hoje usam os eventos esportivos como pretexto para balançar as redes sociais. Na dificuldade de comparar períodos diferentes, resta o Fla-Flu e a bola laranja. Em meio à expectativa pelo primeiro clássico no novo Maracanã, a diversidade de sensações vividas no templo sugere que os grandes momentos não se repetem. Apesar da possibilidade de transformação, a começar pelas linhas do estádio, há no seu conteúdo uma superlotação de lembranças que a evolução não comporta. Nunca mais.
Com carga total de 53.540 ingressos, Fla-Flu e o Maracanã de hoje estão reduzidos a quase um quarto do que já foram um dia. A quantidade de lugares não tem relação direta com os ganhos financeiros. Em 1963, 177.656 pagaram para produzir arrecadação de 57.993.500 cruzeiros, que correspondem hoje a R$ 562.842,20, segundo a variação do IPC da Fipe no período. Pela mesma conversão, o ingresso médio custava R$ 3,16. Pelo IGP-DI, da FGV, que considera oscilação de produtos da pauta de exportação e não apenas os bens e serviços ao consumidor, a renda seria de R$ 1.985.675,53, com ingresso médio de R$ 11,7. Qualquer que seja a metodologia, a maior diferença está na comparação com os valores atuais. Com ingresso mais barato a R$ 100, o primeiro jogo do Flamengo no novo Maracanã, no empate em 2 a 2 com o Botafogo, teve 38.835 pagantes e renda de R$ R$ 3.082.555.
Bola erguida como troféu
Embora o futebol avance com a gestão profissional, algumas ações representam o atraso. Mesclada por cores que se fundem numa mancha alaranjada, a atual bola do Brasileiro lembra como era difícil visualizá-la nos tempos em que a tonalidade era produzida apenas pelo beneficiamento do couro. Com cabeças e corações pulando fora do lugar, a visão ficava ainda mais comprometida naquela tarde em que o Flamengo jogava pelo empate para ser campeão. No último lance do jogo, Escurinho entrou livre e tentou encobrir Marcial, que defendia o gol à esquerda das cabines de rádio. Do lado oposto, a torcida tricolor já gritava gol naquela fração de segundo que leva uma eternidade até o balançar das redes confirmar o êxtase.
— Vi que ia me encobrir, ameacei sair e voltei. A bola sumiu para quem estava do outro lado. Ficou todo mundo procurando, até que levantei a bola. Estava na minha mão — diz Marcial, 72 anos, ao lembrar o lance em que ergueu seu troféu particular. — Dizem que goleiro não ganha jogo, mas esse acho que ganhei. Um técnico folclórico em Minas dizia: “Futebol é igual guerra; quem ganha, vence.” Só por isso se lembram de mim até hoje.
Com 22 anos à epoca, Marcial abandonou o futebol quatro anos depois para concluir o curso de medicina na Universidade Federal de Minas Gerais. Criado pelos tios numa fazenda nos arredores de Uberlância, já havia defendido o Atlético-MG antes de encerrar a carreira no Corinthians. Como só poderia ter a matrícula trancada por cinco anos, teve de retomar os estudos sob pena de ter de prestar vestibular novamente. No sentido contrário do termo, que representa um cartão vermelho no mundo acadêmico, foi jubilado com honras ao deixar os gramados como um herói rubro-negro. A distância entre mundo da academia e do futebol não o impediu de se sentir à vontade nos dois.
— Achava a turma do futebol mais inteligente que os colegas da faculdade. Para chegar à bola, um goleiro tem que calcular bissetriz, velocidade, ângulo. O Garrincha eram inteligente pra burro, não apenas para as situações de jogo, também para botar apelido e brincar com os outros — recorda, antes de falar do Rei. — Quando Pelé inteirou mil gols, 1% era meu. Pelo menos, nenhum gol marcado por ele era frango. Teve uma falta, com o campo molhado, que passou debaixo da minha barriga. No dia seguinte estava no jornal que o Pelé cobrou a falta inteligentemente por baixo do grande Marcial.
O maior de todos era o Maracanã. Com 19 anos em 1963, Carlos Alberto Torres entrava no templo para um ritual de batismo. A derrota na primeira decisão da carreira serviu para completar seu processo de vacinação. Em 1969, era um dos líderes da seleção brasileira que se classificou para a Copa do Mundo ao vencer o Paraguai por 1 a 0 diante de 183.341 pagantes. Como técnico do Flamengo, celebrou o título brasileiro em 1983 com 155 mil rubro-negros.
— A gente volta no tempo e vê que tudo isso valeu à pena — diz, antes de trocar a saudade pelo entusiasmo diante das mudanças. — Tudo evolui. Sou a favor de que as pessoas de bem tenham prazer de sair de suas casas para ir ao estádio. Só não concordo com o aumento tão grande do preço dos ingressos, porque tira a força do nosso futebol, que está no torcedor.
Os gritos de outrora ainda servem de estímulo para ir além. Recuperando-se de um acidente vascular cerebral, Nelsinho Rosa, ex-ídolo do Flamengo e técnico campeão brasileiro de 1989 pelo Vasco, ainda escuta a vibração daquele jogo como uma música de Roberto Carlos, com arranjo de cordas do seu companheiro de meio campo no Fla, Carlinhos, o Violino
— Belas tardes de domingo, quantas alegrias — cita a canção do Rei, ao lembrar que o ar do futebol era mais puro. — As torcidas se misturavam. Não havia tanta violência dentro ou fora de campo. Tanto que eu e Carlinhos ganhamos o Prêmio Belfort Duarte (dado a jogadores que ficavam dez anos sem levar cartão vermelho).
Além da distinção concedida aos mais disciplinados, os jogadores também competiam por dinheiro. No dia seguinte à conquista, Marcial cobrou do presidente rubro-negro Fadel Fadel o pagamento integral da premiação, embora o clube oferecesse a metade, sob alegação de que o jogo terminara empatado.
— Diante dos jornalistas, ele disse: “A gente está preparando as faixas, e você vem falar de dinheiro?” Respondi que, quando eu parasse de jogar, não iam me vender nada no açougue se eu só levasse a faixa
Mãos firmes para aliviar a dor
Ao trocar a camisa escura pelo jaleco branco, Marcial continuou a produzir em seus pacientes a mesma sensação que oferecia às multidões. Para torcedores dos times mais populares do país ou para os pacientes da rede pública, o alívio está nas luvas do goleiro que virou anestesiologista
— Minhas mãos nunca tremeram — disse, ao voltar à concentração rubro-negra, no Hotel Paineiras, nos momentos que antecederam à decisão. — Eu estava dormindo antes de a gente descer para o Maracanã.
O contraste entre a vida bucólica e as tensões urbanas não marcavam apenas a rotina de Marcial, que morava na Rua dos Oitis, na Gávea, tomava chope no Hipódromo, conhecido como bar do português Américo, e fazia uma feijoada para jogadores nas segundas-feiras de folga. Em dezembro de 1963, o Brasil vivia o último verão de liberdade antes do golpe militar. O sopro de otimismo nacionalista, com as conquistas da seleção e a bossa nova, dariam lugar a um atmosfera sufocante que já tomava conta do Maracanã naquela tarde por outras razões. Com o futebol, logo a política levantaria as massas numa versão analógica das manifestações que hoje usam os eventos esportivos como pretexto para balançar as redes sociais. Na dificuldade de comparar períodos diferentes, resta o Fla-Flu e a bola laranja. Em meio à expectativa pelo primeiro clássico no novo Maracanã, a diversidade de sensações vividas no templo sugere que os grandes momentos não se repetem. Apesar da possibilidade de transformação, a começar pelas linhas do estádio, há no seu conteúdo uma superlotação de lembranças que a evolução não comporta. Nunca mais.
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