Raro.
Adjetivo mais adequado impossível para qualificar sujeito de trajetória
das mais peculiares dentre as vistas no futebol carioca: Horácio
Narciso Doval, o Doval, o primeiro "El Loco" que jogou bola
profissionalmente no Rio, onde tornou-se ídolo de Flamengo e Fluminense.
Também conhecido como "Diabo Louro", faria 70 anos em 4 de janeiro
deste ano caso uma parada cardíaca não o levasse prematuramente no dia
12 de outubro de 1991, aos 47. O septuagenário do argentino, aliás, é um
dos principais motivos que levaram Sérgio Rossini, tricolor de coração,
e Federico Bardini, compatriota do craque e rubro-negro desde 81, a
investirem na produção do filme "Doval: o gringo mais carioca do
futebol".
- Na realidade, o gancho é que ele nasceu em 1944 e
estaria fazendo 70 anos no início de 2014. A gente até está um pouco
atrasado, porque começamos a fazer o filme no ano passado com intenção
de ficar pronto nesse ano. A gente espera acabar até o final do ano para
poder casar com essa data de 70 anos. Vamos fazer uma algumas
entrevistas ainda na Argentina e nos Estados Unidos, onde ele encerrou a
carreira - disse Rossini.
O argentino não chamou atenção de
Sergio e Federico somente pelo futebol. A forma como se adaptou
rapidamente ao Rio de Janeiro, segundo a dupla, é das características
mais encantadoras do protagonista da película que pretendem finalizar
até dezembro.
O "carioca" Doval
-
Há vários filmes do Pelé, do Zico, há um ótimo filme sobre Garrincha,
mas não tem um sobre o Doval. Lógico que outros craques merecem filme,
mas a vida do Doval é uma vida de filme mesmo, cinematográfica. Além de
um ídolo de futebol, também foi uma figura pública bem interessante e
popular. É um personagem carioca, que andava de moto em Ipanema sem
capacete e nem chinelo. Quando era parado por policiais, logo era
liberado. Era pão-duro. Falava "Ídolo não paga". Há uma padaria famosa
aqui em Ipanema aonde ele tomava café diariamente e não pagava. Dizem
que o português de lá ficava p... - afirmou Bardini, às gargalhadas.
Rossini
e Bardini fizeram questão de conceder a entrevista em frente à Rua
Vinícius de Moraes, ponto da Praia de Ipanema onde Doval curtia seus
fins de semana (Foto: Fred Gomes)
Doval
vira filme também, de acordo com Rossini e Bardini, pela capacidade de
agradar a gregos e troianos. No caso carioca, a rubro-negros e
tricolores.
- Eu e ele (Bardini) não vimos o Doval jogar, mas
queríamos fazer algo juntos há muito tempo. Pensávamos em algo sobre
futebol, e eu já admirava o Doval e ele também. Eu, por ser tricolor, e
ele, por ser flamenguista e argentino, fez do Doval nosso personagem
ideal - explicou Rossini, que objetiva também descrever na obra os
contextos políticos de Brasil e Argentina - o regime ditatorial imperava
em ambas as nações.
Resgatar
a memória de um dos maiores ídolos de Fla e Flu é outros dos grandes
objetivos da dupla de diretores. Ambos concordam que pouco se fala de
Doval atualmente. Dimensionam a importância do argentino para o Flamengo
pautando-se em comentário de Márcio Mará, editor do GloboEsporte.com e
um dos depoentes do documentário.
- É um personagem do qual a
gente precisava contar essa história, completamente esquecida. Ninguém
cita o Doval e ninguém lembra muito dele, é um nome que precisa ser
trazido de volta. A partir do momento em que não se escuta falar do nome
de um jogador, esse jogador vai ficando no esquecimento. O Mará diz que
o Doval foi o único jogador capaz de dividir a idolatria da torcida
rubro-negra com o Zico. Mará ainda afirma que o fato de a geração de
Zico ter conquistado tudo pelo Flamengo acabou ofuscando um pouco do que
foi o Doval e do que ele fez pelo clube - lamentou Rossini.
Pedido de doações
Investimentos
para a conclusão do filme são bem-vindos, afirma Rossini. Buscam
doações num site de financiamento compartilhado, mas até agora só
conseguiram cerca de R$ 400 dos R$ 129 mil que pretendem arrecadar. A
dupla afirma que os doadores terão o nome incluído nos agradecimentos e
poderão ganhar brindes. O valor da contribuição define a recompensa.
Gols
pautaram a passagem do Gringo por Flamengo e Fluminense - foram 94
vestindo vermelho e preto e outros 68 ostentando a camisa tricolor -,
mas histórias que certamente redundariam em polêmicas homéricas nos dias
de hoje merecem destaque, opinam Rossini e Bardini. Para ilustrá-las
aos mais jovens, lançarão mão de cenas ficcionais.
Doval nas areias de Ipanema. No bairro, fez sucesso com as
mulheres ao lado dos compositores Marcos e Paulo Cesar Valle, com quem
formou o "Trio Colírio" (Foto: Arquivo de Federico Bardini e Sergio
Rossini)
Queda de moto e "ciúme" de Zico
-
Há muitas histórias interessantes, como a em que ele caiu de moto a
dois dias da final do Carioca de 1974 e não conseguiu jogar - O Fla foi
campeão. Vamos, inclusive, abrir teste para encontrar o Doval ator,
essas cenas, as aventuras do Doval, têm que ser resgatadas em forma de
ficção. Até hoje as pessoas que entrevistamos em Ipanema falam com muita
saudade, choram e se arrepiam. Com certeza é o argentino mais querido
do Brasil, pode fazer um enquete que não tem igual. Quem se compararia? O
Tévez no Corinthians? Nem se compara. Um simples mergulho dele na Praia
de Ipanema dava capa de jornal, algo muito incomum na época. A gente
também levantou uma história de ciúme que foi logo totalmente desmentida
pelo Zico. Há quem fale que o Zico foi um dos responsáveis pela saída
de Doval, mas o próprio Zico afirma que era amigo dele. O Zico nos
contou nas gravações que passou sua lua de mel em Buenos Aires e que lá o
Doval os levou aos melhores lugares. O Doval também elimina qualquer
hipótese disso quando disse, nos anos 70, que, apesar dos nove anos a
mais que tinha em relação a Zico, guardava conselhos do Galo, pois o
considerava muito mais profissional. O Doval era p... louca, e o Zico
muito profissional - conta Federico.
A grande paixão da vida de Zico, aliás, é outro motivo de "ciúme". Sandra, antes de conhecer, namorar e se casar com o Galinho, ia à Gávea para tietar um jogador louro. Mas o "russo" em questão era Doval e não seu futuro amor.
A grande paixão da vida de Zico, aliás, é outro motivo de "ciúme". Sandra, antes de conhecer, namorar e se casar com o Galinho, ia à Gávea para tietar um jogador louro. Mas o "russo" em questão era Doval e não seu futuro amor.
-
Ele conheceu a Sandra porque ela ia ao Flamengo por ser fã do Doval.
Ela tinha um álbum com fotos do Doval, e o Zico brinca que, quando
começou a namorar com ela, falou: "Joga isso no lixo" (risos) -
prossegue Bardini.
Erro sobre morte
Outra
meta do documentário é desmistificar uma das versões mais propaladas
sobre a morte de Doval. Diz-se que o óbito se deu em meio a celebrações
de vitória por 2 a 0 do Flamengo sobre o Estudiantes, em 9 de outubro de
1991, quando os clubes duelaram pela primeira fase da Supercopa. Na
verdade, o Gringo veio a falecer três dias depois, num sábado. Segundo
Federico Bardini, no fim de semana em questão, fruto de sua inexorável
identificação com o Rubro-Negro, disputou torneio de masters com a
camisa do Fla. Foi campeão e artilheiro, mas acabou transferido para o
"time dos imortais" ao festejar mais um triunfo em vermelho e preto,
porém protagonizado por ele próprio e não pelo time profissional, que,
coincidentemente, passava pela Argentina na mesma semana.
- Quero
desmentir isso. A gente comprovou que se trata de um erro histórico. O
Flamengo joga na Argentina dias antes, quem nos contou a versão
verdadeira foi o Gil (Búfalo, ponta-direita da máquina tricolor). Nesse
fim de semana, houve um torneio sênior de futebol em que jogaram River
Plate, mais um time que não lembro, o Flamengo e um time de São Paulo. O
Gil contou: "Nunca joguei pelo Flamengo, mas o Doval me convidou e não
pude recusar". O Flamengo ganhou o torneio, o Doval foi o artilheiro, e,
à noite, foram comemorar num restaurante chamado "La Estancia" e depois
foram para a boate "New York City". O Doval morre entrando no carro, na
saída da boate. Dizem que, assim como o pai dele, era hipertenso -
encerra Bardini.
Vinte e três anos se passaram do ocorrido,
mas Doval, referência, ícone carioca e ídolo da dupla Fla-Flu, vive até
hoje no Rio, mais especificamente nas areias de Ipanema.
Morte de Doval é informada por "O Globo" em 13 de outubro de 1991 (Foto: Reprodução/Acervo "O Globo")
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